Três diferenciações entre Freud e Lacan
- Thalina Lima
- 28 de mai. de 2024
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Algumas diferenciações entre Freud e Lacan são possíveis de visualizar, como a constituição do inconsciente, papel da linguagem e interpretação e técnica. A iniciar pela constituição do Inconsciente, onde, na obra "O Inconsciente" de Sigmund Freud, publicada em 1915, o autor desenvolve uma concepção revolucionária sobre a natureza do inconsciente. Para Freud, o inconsciente não é apenas um depósito passivo de pensamentos reprimidos ou esquecidos, mas um domínio ativo e dinâmico da mente, onde residem desejos, impulsos e memórias de natureza emocional que estão fora da consciência do indivíduo. Ele argumenta que o inconsciente exerce uma influência poderosa sobre o comportamento humano, manifestando-se através de sonhos, lapsos de memória e atos falhos. Além disso, Freud destaca a importância do trabalho psicanalítico em trazer à tona esses conteúdos inconscientes, permitindo assim que o sujeito compreenda melhor suas motivações e conflitos internos, e promovendo, desse modo, o processo de cura psíquica.
Enquanto que no Seminário, livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise de Lacan (1964[2] ), o conceito de constituição do inconsciente é abordado como resultado de um processo complexo de linguagem e simbolização. Lacan argumenta que o inconsciente não é inato, mas é formado através da entrada do sujeito na ordem simbólica, marcada pela linguagem e pela estruturação do desejo.
[...] o inconsciente se manifesta sempre como o que vacila num corte do sujeito - donde ressurge um achado que Freud assimila ao desejo - desejo que situaremos provisoriamente na metonímia desnudada do discurso em causa, em que o sujeito se saca em algum ponto inesperado. (LACAN, 1964 p. 32)
Nesse sentido, o inconsciente é construído a partir das relações do sujeito com o significante, sendo moldado pelas demandas da cultura e pelas interações com o Outro. Essa visão ressalta a importância da linguagem na constituição do psiquismo humano e na emergência dos conteúdos inconscientes que influenciam o sujeito em sua vida mental e social.
A linguagem tem um papel central na teoria lacaniana. Nesta, a linguagem não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas também estrutura o próprio sujeito. Ele desenvolve o conceito de "ordem simbólica", onde a linguagem organiza a experiência subjetiva e determina o sujeito.
[...] era preciso ver no inconsciente os efeitos da fala sobre o sujeito - na medida em que esses efeitos são tão radicalmente primários que são propriamente o que determina o estatuto do sujeito como sujeito. Aí está uma proposição destinada a restituir o inconsciente freudiano ao seu lugar. Seguramente, o inconsciente esteve sempre presente, existindo, agindo, antes de Freud, mas importa sublinhar que todas as acepções que foram dadas, antes de Freud, dessa função do inconsciente, não têm absolutamente nada a ver com o inconsciente de Freud. (LACAN, 1964, p. 122)
Freud, reconhece a importância da linguagem na comunicação dos conteúdos do inconsciente (como nos sonhos e atos falhos), não a coloca no centro da sua teoria. Uma das obras em que ele aborda esse tema é "A Interpretação dos Sonhos", publicada em 1900. Neste livro, Freud explora extensivamente os processos psíquicos envolvidos nos sonhos, argumentando que eles são expressões do inconsciente, diz que “todo sonho passa pela mente desperta, demonstra como os sonhos podem revelar desejos reprimidos e conflitos psíquicos, seja como desejo, anseio ou impulso” (Freud, 1900, p. 59) e reconhece a importância da linguagem na manifestação desses conteúdos. No entanto, Freud concentra-se mais na interpretação dos sonhos como uma via para acessar o inconsciente do que na análise da linguagem em si como um fenômeno central na psicanálise.
A técnica freudiana se dá pela observação, investigação e interpretação, onde a observação minuciosa objetiva investigar o fenômeno em busca de significados ocultos, revelando a estrutura psíquica do sujeito e fundamentando a interpretação como característica essencial. ele utiliza a interpretação que visa trazer à consciência os conteúdos reprimidos do inconsciente, permitindo a análise e resolução dos conflitos psíquicos, essa técnica interpretativa se destaca ao extrair dos eventos involuntários os materiais essenciais que compõem os pensamentos reprimidos. Não abrange apenas as experiências relatadas pelo paciente, mas também os sonhos, que oferecem uma rota direta para compreender o inconsciente, assim como seus atos involuntários e não planejados (atos sintomáticos) e equívocos em suas realizações. (FREUD, 1856-1939 p. 51)
[...] uma sessão assim transcorre como uma conversa entre duas pessoas igualmente despertas, sendo que uma delas poupa todo e qualquer esforço muscular, assim como toda impressão dos sentidos que possa atrapalhar a concentração na sua própria atividade anímica. (FREUD, 1856-1939 p. 49)
Através do método psicanalítico, o analista em atenção flutuante busca desvendar conteúdos reprimidos presentes tanto no autor quanto no espectador de uma obra de arte, permitindo uma reconstrução do processo criativo a partir da emoção sentida. Essa abordagem evidencia a comunicação cifrada inconsciente a inconsciente, uma espécie de empréstimo do inconsciente do analista para o analisando, o que possibilita ao analista interpretar o conteúdo inconsciente por meio das associações suscitadas pelo material. A emoção despertada por uma obra de arte permite ao analista acessar sensações contratransferenciais, revelando a marca do inconsciente do autor na obra. A associação livre do analista, em conjunto com a contratransferência, desempenha um papel crucial, pois a partir disso se traduzirá o que está latente. (KOBORI, 2013)
Lacan enfatiza a importância da interpretação como um processo de revelação do significado inconsciente dos discursos do paciente. Ele introduz o conceito de "três registros" (Real, Simbólico e Imaginário), onde, o Real em Lacan não é simplesmente a realidade tangível, mas algo que escapa à simbolização e à representação. Ele é o domínio do que é impossível de simbolizar completamente, como traumas, angústias profundas e experiências extremas que desafiam a capacidade do sujeito de simbolizar, “é aquilo que retorna sempre ao mesmo lugar.” (LACAN, 1964, p. 54)
O Simbólico refere-se à ordem da linguagem e da cultura que estrutura a experiência humana. É o campo em que os significados são atribuídos aos objetos e eventos através de sistemas simbólicos compartilhados. O Simbólico é fundamental para a constituição do sujeito e da identidade, “diz respeito àquilo no qual o sujeito se compromete numa relação propriamente humana; [...] trata-se de um compromisso: em “eu quero ... eu amo”, há sempre algo, literalmente dito, de problemático, [...] um elemento temporal muito importante a ser considerado”. (LACAN, 1953 p. 10)
O Imaginário é o registro da imagem especular, onde o sujeito se constitui através da identificação com a imagem do outro. É o domínio das identificações narcísicas e das ilusões de completude e coerência do eu. “Assim dizemos que um comportamento pode ser imaginário quando sua oscilação entre imagens o torna suscetível de deslocamento fora do ciclo que assegura a satisfação de uma necessidade natural” (LACAN, 1953, p. 4)
Além dos conceitos de Real, Simbólico e Imaginário, o analista lacaniano emprega conceitos como o "objeto a" e o "Nome-do-Pai", onde o objeto ‘a’ é:
algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão. Isso vale como símbolo da falta, quer dizer, do falo, não como tal, mas como fazendo falta. É então preciso que isso seja um objeto - primeiramente, separável - e depois, tendo alguma relação com a falta. (LACAN, 1964, p. 101)
Enquanto que o Nome-do-Pai, “sustenta a estrutura do desejo com a da lei [...] é seu pecado” (Lacan, 1964, p. 38), ou seja, representa a entrada do sujeito na ordem simbólica e a constituição de sua identidade e desejo dentro do contexto cultural e social.
Esses conceitos fundamentais fornecem uma estrutura teórica para a compreensão da psicanálise lacaniana, destacando a importância da linguagem, da realidade não simbolizável, do simbólico e do imaginário na constituição do sujeito na dinâmica psíquica e, como dito, a linguagem é central na clínica lacaniana. Ele acreditava que os sintomas e os conflitos psíquicos se manifestam na linguagem, e, portanto, a análise foca na interpretação do discurso do paciente em busca de significados ocultos e associações.
O método da associação livre, assim como em outras abordagens psicanalíticas é utilizado na clínica lacaniana. Os pacientes são encorajados a falar livremente sobre seus pensamentos, sentimentos e experiências, sem censura ou filtro, para compreender a dinâmica psíquica do paciente e interpretar os significados subjacentes ao discurso, o que permite ao analista acessar conteúdos inconscientes.
Assim, sucintamente, as diferenças entre a clínica e epistemologia freudiana e a epistemologia e clínica lacaniana refletem abordagens distintas no campo da psicanálise. Enquanto Freud concebe o inconsciente como um reservatório de impulsos e desejos reprimidos, Lacan o reformula como estruturado pela linguagem. Para Freud, a linguagem desempenha um papel na comunicação dos conteúdos do inconsciente, mas não é central em sua teoria, ao contrário de Lacan, para quem a linguagem é fundamental na estruturação do sujeito. Quanto à interpretação e técnica, Freud visa trazer à consciência os conteúdos reprimidos, enquanto Lacan enfatiza a revelação do significado inconsciente dos discursos do paciente, operando em diferentes registros. Essas diferenças destacam as contribuições singulares de cada abordagem para o entendimento da mente humana e a prática clínica psicanalítica.
Referências Bibliográficas
FREUD, Sigmund (1856-1939). Fundamentos da clínica psicanalítica / Sigmund Freud; tradução Claudia Dornbusch. -- 1. ed. -- Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. -- (Obras incompletas de Sigmund Freud; 6)
FREUD, Sigmund. “A interpretação dos sonhos” (1900). In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,1996
FREUD, Sigmund. “O Inconsciente” (1915). In: Obras Completas (Cia.dasLetras) – Vol.12 p. 100-150.
KOBORI, Eduardo Toshio. Algumas considerações sobre o termo Psicanálise Aplicada e o Método Psicanalítico na análise da Cultura - Rev. Psicol. UNESP vol.12 no.2 Assis dez. 2013. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-90442013000200006#:~:text=O%20m%C3%A9todo%20psicanal%C3%ADtico%20consiste%20em,Freud%2C%201893%2F1977). Acesso em 22 fevereiro 2024.
LACAN. Jacques. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, Jacques. O Simbólico, o Imaginário e o Real (1953). [Tradução: Maria Sara Gomes Silvia Mangaravite] *Este texto foi publicado em Papéis, n.4, abril de 1996. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/136134459/Lacan-O-Simbolico-o-Imaginario-e-o-Real. Acesso em 25 fevereiro 2024.
São Paulo, 03 de março de 2024.
Thalina Lima
992501061(11)
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